O
avanço do ISIL, o Califado Islâmico da Síria e do Levante, tem deixado
um rastro de morte. Entre as maiores vítimas do seu fundamentalismo
estão as minorias religiosas: alauítas, xiitas e cristãos. Contudo, no
caso dos “nazarenos” a situação toma feições ainda mais sangrentas.
Politicamente sozinhos, sem o apoio de forças regionais, como o Baath
(alauítas) ou Irã (xiitas), os cristãos são alvos fáceis. Por mais que
duras críticas tenham sido feitas de dentro da comunidade islâmica, como
as posições do Ayatollah Sistani, no Iraque, e de Hassan Nasrallah,
líder do Hezbollah, no Líbano, até então nada conseguiu retardar o
incremento da violência aos seguidores de Jesus Cristo. Contudo, na raiz
do problema se encontra a concepção da dignidade do homem no islã e dos
direitos inerentes à sua condição enquanto tal.
Uma noção “imanente” do direito, como
desenvolvida no cristianismo, desde os Padres da Igreja, passando por
Santo Tomás, chegando em Francisco de Vitória e em Hugo Grócio, reflete o
modo como a Igreja entendia a “imanência” como o lugar privilegiado
onde se revelava a transcendência. O homem é sujeito de direitos porque
ele é homem, criado à imagem e semelhança do seu Criador, e não porque
esses direitos são impostos do exterior. Contudo, no islamismo o homem,
por si, não é um sujeito de direitos, mas os obtém na medida em que faz
parte da comunidade islâmica. A sua dignidade é reflexo, portanto, da
sua condição de crente. A fidelidade às prescrições de Deus, contidas no
Corão e na Sunna, é o que concede a ele a dignidade. Assim, passa da
condição de escravo (‘abd) para a de fiel (mu’min).
Isso reflete, de modo inevitável, no
tratamento às minorias religiosas dentro do mundo islâmico. Se o direito
do homem é dependente da sua condição de fiel, os não-muçulmanos seriam
sujeitos essencialmente deficitários de dignidade? É evidente que
dentro da Ummah uma igualdade absoluta de direitos e de deveres é
completamente inconcebível. Surge então uma diferença de status pessoal
que rege as relações entre os crentes e os não-crentes, além de garantir
uma proteção contratual (dhimma) aos “povos do livro”; os judeus, os
cristãos e os sabeus. Com a expansão do império islâmico outras
religiões, como budismo, hinduísmo, foram admitidas como sendo ′Ahl
al-Kitāb.
Assim, aos não-muçulmanos era impossível
ter a plenitude do direito, status particular daqueles que habitavam na
“cidade do Islã” (Dar al-Islam). Contudo, no lado oposto se encontrava a
“cidade da guerra”, (Dar al-Harb), os países onde o islamismo ainda não
era religião majoritária. As relações com os estados não-muçulmanos
estavam regidas pela concepção de jihad, no sentido de esforço pela
expansão da fé. Com o enfraquecimento do império islâmico e sua
consequente fragmentação, um novo conceito é cunhado, “cidade do pacto”
(Dar al-Ahd), fazendo referência aos países com os quais se tinha criado
alianças de não-agressão. Como membros da “Dar al-Harb” no seio da “Dar
al-Islam”, os não-muçulmanos eram cidadãos de segunda classe. Ainda
pagando taxas (jizya) pela liberdade – relativa – de culto, aos
“dhimmis” era proibida qualquer manifestação de fé: orações em voz alta
eram ilegais, assim como o badalar dos sinos ou o uso do shofar. Vale
destacar, contudo, que os não-muçulmanos constituíam um tribunal
paralelo, podendo reger suas comunidades através das suas próprias leis.
Todavia, deve ser recordado que dentro da
história do islamismo, e levando em consideração o contexto temporal,
houve momentos onde a interação entre os muçulmanos e os dhimmis
transcorreu com muita normalidade, inclusive com a relativização das
proibições. Existem relatos eloquentes da construção de comunidades
pluralistas na Andalusia, na Pérsia, na Índia e no Império Otomano.
Ademais, desde o séc. XIX, com a realização de mudanças constitucionais
de influência europeia em Istambul, o status dos dhimmis foi abolido. As
taxas foram sendo sistematicamente retiradas, até a adoção de uma
estrutura tributária moderna e universal. Com o edito de 1856 (Islâhat
Fermânı), parte do período de reformas estruturais no império entre 1839
– 1876, os não-muçulmanos ganharam um status civil, inclusive com a
melhoria das relações dos sultões com a igreja (sacerdotes, bispos e
patriarcas passaram a receber um salário do estado).
No mundo contemporâneo existem exemplos
positivos da relação entre cristãos e muçulmanos, como o Líbano e a
Síria. No Irã, um caso muito singular, ainda que a liberdade religiosa
não seja perfeita, a liberdade de culto é a melhor exercida dentro de um
“estado islâmico”: aos cristãos tradicionais (católicos, ortodoxos,
assírios e armênios) é permitida a construção de igrejas e as
manifestações de fé. Pela constituição o parlamento também deve ter
representantes das minorias religiosas legais (cristãos, judeus e
zoroastristas). A longa presença cristã no Irã, tanto através dos
armênios que lá estão há milênios, como também pela chegada dos
católicos, inclusive de rito latino (dominicanos), no séc. XVI,
favoreceu a completa assimilação cultural. Contudo, o que hoje é visto
na Síria e principalmente no Iraque, é uma barbaridade perpetrada em
defesa de anacronismos já superados, seja pela história, como também
pela hermenêutica.
fonte : http://islamidades.wordpress.com/2014/07/25/a-perseguicao-aos-cristaos-e-o-direito-dos-dhimmis/
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