
Uma noção “imanente” do direito, como
desenvolvida no cristianismo, desde os Padres da Igreja, passando por
Santo Tomás, chegando em Francisco de Vitória e em Hugo Grócio, reflete o
modo como a Igreja entendia a “imanência” como o lugar privilegiado
onde se revelava a transcendência. O homem é sujeito de direitos porque
ele é homem, criado à imagem e semelhança do seu Criador, e não porque
esses direitos são impostos do exterior. Contudo, no islamismo o homem,
por si, não é um sujeito de direitos, mas os obtém na medida em que faz
parte da comunidade islâmica. A sua dignidade é reflexo, portanto, da
sua condição de crente. A fidelidade às prescrições de Deus, contidas no
Corão e na Sunna, é o que concede a ele a dignidade. Assim, passa da
condição de escravo (‘abd) para a de fiel (mu’min).
Isso reflete, de modo inevitável, no
tratamento às minorias religiosas dentro do mundo islâmico. Se o direito
do homem é dependente da sua condição de fiel, os não-muçulmanos seriam
sujeitos essencialmente deficitários de dignidade? É evidente que
dentro da Ummah uma igualdade absoluta de direitos e de deveres é
completamente inconcebível. Surge então uma diferença de status pessoal
que rege as relações entre os crentes e os não-crentes, além de garantir
uma proteção contratual (dhimma) aos “povos do livro”; os judeus, os
cristãos e os sabeus. Com a expansão do império islâmico outras
religiões, como budismo, hinduísmo, foram admitidas como sendo ′Ahl
al-Kitāb.
Assim, aos não-muçulmanos era impossível
ter a plenitude do direito, status particular daqueles que habitavam na
“cidade do Islã” (Dar al-Islam). Contudo, no lado oposto se encontrava a
“cidade da guerra”, (Dar al-Harb), os países onde o islamismo ainda não
era religião majoritária. As relações com os estados não-muçulmanos
estavam regidas pela concepção de jihad, no sentido de esforço pela
expansão da fé. Com o enfraquecimento do império islâmico e sua
consequente fragmentação, um novo conceito é cunhado, “cidade do pacto”
(Dar al-Ahd), fazendo referência aos países com os quais se tinha criado
alianças de não-agressão. Como membros da “Dar al-Harb” no seio da “Dar
al-Islam”, os não-muçulmanos eram cidadãos de segunda classe. Ainda
pagando taxas (jizya) pela liberdade – relativa – de culto, aos
“dhimmis” era proibida qualquer manifestação de fé: orações em voz alta
eram ilegais, assim como o badalar dos sinos ou o uso do shofar. Vale
destacar, contudo, que os não-muçulmanos constituíam um tribunal
paralelo, podendo reger suas comunidades através das suas próprias leis.
Todavia, deve ser recordado que dentro da
história do islamismo, e levando em consideração o contexto temporal,
houve momentos onde a interação entre os muçulmanos e os dhimmis
transcorreu com muita normalidade, inclusive com a relativização das
proibições. Existem relatos eloquentes da construção de comunidades
pluralistas na Andalusia, na Pérsia, na Índia e no Império Otomano.
Ademais, desde o séc. XIX, com a realização de mudanças constitucionais
de influência europeia em Istambul, o status dos dhimmis foi abolido. As
taxas foram sendo sistematicamente retiradas, até a adoção de uma
estrutura tributária moderna e universal. Com o edito de 1856 (Islâhat
Fermânı), parte do período de reformas estruturais no império entre 1839
– 1876, os não-muçulmanos ganharam um status civil, inclusive com a
melhoria das relações dos sultões com a igreja (sacerdotes, bispos e
patriarcas passaram a receber um salário do estado).
No mundo contemporâneo existem exemplos
positivos da relação entre cristãos e muçulmanos, como o Líbano e a
Síria. No Irã, um caso muito singular, ainda que a liberdade religiosa
não seja perfeita, a liberdade de culto é a melhor exercida dentro de um
“estado islâmico”: aos cristãos tradicionais (católicos, ortodoxos,
assírios e armênios) é permitida a construção de igrejas e as
manifestações de fé. Pela constituição o parlamento também deve ter
representantes das minorias religiosas legais (cristãos, judeus e
zoroastristas). A longa presença cristã no Irã, tanto através dos
armênios que lá estão há milênios, como também pela chegada dos
católicos, inclusive de rito latino (dominicanos), no séc. XVI,
favoreceu a completa assimilação cultural. Contudo, o que hoje é visto
na Síria e principalmente no Iraque, é uma barbaridade perpetrada em
defesa de anacronismos já superados, seja pela história, como também
pela hermenêutica.
fonte : http://islamidades.wordpress.com/2014/07/25/a-perseguicao-aos-cristaos-e-o-direito-dos-dhimmis/
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